quinta-feira, 19 de abril de 2012

Efeitos de Vivências Traumáticas em Crianças

Como as vivências podem influenciar o desenvolvimento na infância e na adolescência
     

efeito dos traumas



Há necessidade crescente de estudos, pesquisas, conduta e intervenção psicológica e psiquiátrica para as crianças e adolescentes expostos a eventos traumáticos. Alguns estudos revelam que crianças e adolescentes têm alto risco de desenvolver diferentes problemas comportamentais, psicológicos e neurobiológicos como conseqüência das vivências traumáticas ou experiências de vida estressantes. Outros trabalhos referem que, em algumas pessoas, as experiências traumáticas podem não produzir efeitos psiquiátricos desastrosos e mesmo até alguns efeitos positivos.
Cada vez mais se analisam as variedades de eventos traumáticos precoces ou em tenra idade e sua verdadeira importância no desenvolvimento de quadros conhecidos, tais como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, os Transtornos de Ansiedade, Transtornos Depressivos, Transtornos Comportamentais e outros, ou mesmo nos sintomas de luto traumático das crianças. Apesar do empenho dos pesquisadores, ainda faltam estudos bem desenhados e cientificamente expressivos para análise dos sintomas e quadro clínico de transtornos emocionais conseqüentes ao estresse experimentado por crianças e adolescentes em tenra idade.
Há interesse cada vez maior sobre o impacto de eventos traumáticos em crianças e adolescentes, até por conta dos recentes desastres naturais (tufões, furacões, terremotos, tsunamis) e dos “cataclismos” criados pelo homem, através dos atos de violência (guerras, violência urbana e doméstica, etc).
A pergunta que se faz é se existiriam, e quais seriam, os fatores protetores individuais contra esses traumas, de tal forma que algumas pessoas parecem menos vulneráveis que outras em relação às vivencias estressantes.
O que se observa na clínica diária, é que algumas crianças e adolescentes, vítimas desses traumas, se adaptam e se recuperam de maneira surpreendente, apesar da experiência sofrível pela qual passaram. Constata-se através da revisão de pesquisas sobre o tema, existir uma grande variedade de respostas emocionais aos eventos traumáticos que acometem crianças e adolescentes e, assim, fica cada vez mais difícil atribuir responsabilidade exclusiva ás vivências emocionais precoces.
Uma ocasião - dando um exemplo irônico sobre a importância das fragilidades pessoais em relação àquilo que vida coloca diante de nós - lembro um paciente criado em orfanato que vivia com sintomas extremamente histéricos, sofrendo e fazendo sofrer quem dele se acercava afetivamente. A tudo ele atribuía o fato de ter vivido em orfanato. Aliás uma excelente instituição, que acabava por formar seus internos em excelentes profissionais técnicos.
Um dia, diante de tantas afirmativas suas de que “era assim e era assado” por ter sido criado em orfanato e como se aproximava a data da reunião trianual de sua turma de instituição, disse-lhe que levasse vários cartões de visitas meus para distribuir entre seus pares; se ele estava assim, problemático por ter vivido em orfanato, então, certamente, todos seus colegas de classe deveriam também estar passando pelos mesmos problemas e precisando de tratamento.
Discute-se a existência de uma personalidade mais imune às vivências traumáticas ou, por outro lado, se o apoio social e familiar seria o fator decisivo para essas crianças a se recuperarem, impedindo assim uma conseqüência mais patológica do trauma. Apesar das pesquisas que investigam alterações hormonais causadas pelo estresse em tenra idade e as conseqüências dessas alterações no desenvolvimento emocional futuro, o que se vê na clínica e na vida em geral, é que as conseqüências psicológicas das vivências parecem depender muito mais da personalidade sobre a qual agem essas vivências do que das próprias vivências em si.
Isso corresponderia a dizer que as reações dependem muito mais do agente “agredido” do que do agente “agressor”. Entre as variáveis potenciais que determinam as conseqüências dos traumas vividos por crianças e adolescentes em longo e médio prazo, devemos considerar fortemente as eventuais psicopatologias e predisposições preexistentes nessas pessoas.
Além das variáveis individuais de vulnerabilidades ao trauma, as conseqüências de vivências traumáticas sobre o psiquismo das crianças e adolescentes podem ter também um componente cultural e mesmo étnico. Como exemplo, referimos duas pesquisas. Uma delas, envolvendo uma mostra de 349 adolescentes de nove escolas dos EUA, verificou que 76% delas relataram terem sido testemunhas ou terem sido vítimas de pelo menos um evento violento nos últimos três meses. Dessas exposições à violência o que mais se associou foi o Transtorno de Estresse Pós-Traumático e a Depressão (Ozer, 2004).
A outra, de Seedat (2004), verificou que mais de 80% de uma mostra de 2.041 adolescentes quenianos relataou exposição à violência, como vítimas ou testemunhas, mas somente 5% dessa mostra desenvolveu sintomas completos de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, e 8% desenvolveram sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático parcial.
Talvez a diferença entre uma criança americana e uma queniana quanto as dificuldades para a vida cotidiana imunize as mais sofridas contra os efeitos de certos eventos, ou seja, maiores dificuldades de vida poderiam fazer com que alguns eventos fossem traumáticos para uma criança americana e nem tão traumático para uma queniana. Se isso fosse verdade, então as dificuldades pragmáticas da vida, as vivências mais penosas e as frustrações, até certo ponto, contribuiriam para melhorar a adaptação futura da pessoa.
Em um estudo de109 adolescentes que sofreram abuso sexual, incluindo toques sexuais, beijos, carícias nas mamas ou nos genitais, tentativas de penetração e penetração por alguém da família ou de fora dela, 50% tiveram diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, aproximadamente 33% foram assintomáticas e o restante teve outros problemas não significativos do ponto de vista sintomático (Bal, 2004). Algumas pesquisas importantes mostram que, felizmente, e ao contrário do que pode-se pensar, não é a expressiva e maciça maioria das crianças submetidas a traumas que desenvolve transtornos emocionais significativos.
Também em adultos, parece que a expressiva maioria das pessoas expostas à vivências traumáticas não desenvolve o Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Vieira (2003) refere estudos epidemiológicos indicando que o Transtorno de Estresse Pós-Traumático afeta aproximadamente 15% a 24% das pessoas expostas a eventos traumáticos.
Isso nos leva a crer existirem outros fatores e outras variáveis influindo nas respostas emocionais aos traumas, como por exemplo, características da personalidade, como já dissemos, sensibilidade pessoal afetiva e emocional, estrutura de apoio familiar e social e, obviamente, a própria natureza do trauma.
O perfil afetivo da pessoa que reage é fundamental para a valorização da experiência vivida, a ponto dos eventos serem mais traumáticos para uns que para outros. Tem ainda o “fator depressão”, ou seja, o fato das pessoas mais depressivas terem muito mais dificuldade adaptativa diante dos estressores da vida. Na prática, a tonalidade afetiva responsável pela “valorização” do trauma seria representada pela pessoa que lamenta chorosamente as experiências vividas, dizendo sofrer “até hoje” as conseqüências “malditas” de tudo que aconteceu de terrível, e por outra pessoa que, vivendo experiências igualmente traumáticas, regozija-se por “tudo isso já ter passado” e sente-se muito bem por "ter superado essas vivências".
Juntando isso ao fato do Transtorno de Estresse Pós-Traumático ser acompanhado de taxas elevadíssimas de Depressão (comorbidade), surge a clássica pergunta; a Depressão e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático seriam síndromes distintas ou, ao contrário, seriam aspectos diferentes de um mesmo fenômeno emocional. Se assim fosse, então o Transtorno de Estresse Pós-Traumático seria apenas um outro tipo de manifestação clínica da depressão.
Para quem se interessa pelo tema, colocando-se como termos a serem pesquisados "transtorno do estresse pós-traumático", "trauma psicológico" e "crianças e adolescentes" em dois bancos de dados relevantes da literatura científica para a medicina (MedLine, PsycInfo), encontrará no mínimo 445 artigos relevantes.
Ali vê-se que, entre uma ampla variedade de eventos traumáticos expressivos, como por exemplo a violência na comunidade, desastres naturais e aqueles criados pelo homem, abuso e maus-tratos a crianças, acidentes em estradas, exposição a doenças clínicas e lide com a morte, é muito grande o número dos casos de violência na comunidade - violência urbana - que acaba resultando em sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Julio Fernando Peres, Antonia Nasello).
Efeitos Orgânicos do Estresse
Para entender os efeitos orgânicos do estresse, lembramos que a base de liberação hormonal está situada no cérebro (hipófise), portanto, as questões cerebrais influem diretamente no funcionamento endócrino de todo organismo. A influência hormonal do estresse atinge mesmo as glândulas situadas fora do cérebro através de um eixo que liga o Hipotálamo (núcleos da base), a Hipófise e as Supra-renais.
A secreção da maioria dos hormônios pela hipófise obedece ao estímulo de pré-hormônios elaborados nos núcleos cerebrais paraventriculares, e estes núcleos são controlados por, pelo menos, dois tipos de estímulos: o estresse e o relógio biológico, responsável por todo ritmo do organismo (sono-vigília, ciclos hormonais das mulheres).
Assim, uma das áreas mais pesquisadas quando se trata dos efeitos físicos das emoções, é no chamado eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenal, ou seja, um sistema que começa no cérebro, na região do hipotálamo (fortemente influenciado pelas emoções), segue pela gandula hipófise (também localizada no assoalho do hipotálamo) e suas repercussões sobre a glândula supra-renal, situadas, como o nome diz, sobre os rins e outras manifestações alérgicas com vulnerabilidade à infecções variadas.
Efeitos Psicopatológicos dos Traumas
O maior volume de pesquisas sobre o impacto psicológico dos traumas em crianças e adolescentes, entretanto, se concentra em abusos, maus tratos e violência doméstica em geral. Em graus muito variáveis de adaptação e superação, crianças que sofreram abuso e maus-tratos correm maior risco de desenvolverem os seguintes quadros, de acordo com os seguintes trabalhos:
Transtornos
Autor
Transtorno de Estresse Pós-Traumático
Bal
Comportamentos Autoprejudiciais
Yates
Alexitimia
Honkalampi
Transtornos do Humor
Duran
Transtorno por abuso de drogas
Singer
Problemas de Comportamento Sexual
Letourneau
Dissociação Psicológica
Collin-Vezina
Somatizações
Maaranen
Alguns grupos de populações pesquisados, como por exemplo, os adolescentes de rua (Stewart, 2004) e os infratores juvenis (Abram - 2004, Brosky - 2004), parecem possuir antecedentes particularmente elevados de experiências traumáticas precoces, tais como abuso físico ou sexual e crime violento. Eles ainda mostraram taxas mais altas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Também foi sugerida uma ligação entre exposição a experiências traumáticas precoces, transtornos psicológicos e comportamento anti-social (Dixon, 2004).
Devemos ter muito cuidado com essas tendências em se atribuir ao sociopata uma causalidade social. Mas não existem, entretanto, pesquisas que investiguem a ocorrência de exposição à vivências traumáticas em pessoas adultas e completamente normais, tanto do ponto de vista psicológico, quanto sócio-ocupacional. E nós sabemos que existem muitos casos assim.


Pesquisas assim procuram verificar a força das características constitucionais da pessoa em relação à qualidade e quantidade da resposta emocional. Explica-se ainda, que as experiências traumáticas precoces também passarão a fazer parte integrante e importante da personalidade em desenvolvimento, portanto, contribuirão significativamente para a constituição da pessoa. Isso quer dizer que o termo “constitucional” não se refere exclusivamente ao que é genético, mas à interação entre o potencial genético e a influência ambiental precoce, desde que o fator em consideração seja definitivo.


criança estressada2
Na página de PsiqWeb sobre personalidade, para entender bem essa questão da constituição, nosso conceito é o seguinte: “Personalidade é a organização dinâmica dos traços no interior do eu, formados a partir dos genes particulares que herdamos, das existências singulares que suportamos e das percepções individuais que temos do mundo, capazes de nos tornar únicos em nossa maneira de ser e de desempenhar nosso seu papel social”. Quando falamos, então, em elementos constitucionais da personalidade, estamos falando das características dessa personalidade que se formaram a partir dos genes herdados e das experiências particulares que vividas.
Ao lado de alguns trabalhos sugerindo que os acidentes em estradas podem ter conseqüências psicológicas e comportamentais danosas para as crianças (Stallard, 2004), outras pesquisas sugerem que algumas crianças também expostas a acidentes de estrada podem experimentar alguns efeitos positivos, denominados “crescimento pós-traumático”, relacionado à melhor percepção de si mesmas, à melhora nas relações interpessoais e mudanças positivas das prioridades da vida (Salter, 2004). Na realidade, recentemente tem-se pesquisado muito esse fenômeno chamado crescimento pós-traumático (Posttraumatic Growth – PTG).
São casos onde, a despeito do sofrimento causado pela experiência traumática, ou mesmo apesar do desenvolvimento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, as pessoas referem ter ficado emocionalmente mais fortes, ou terem amadurecido em áreas como relacionamento interpessoal, escala de valores, definição das prioridades de vida, etc. A ocorrência de sentimentos e emoções positivas, bem como de um desenvolvimento desejável da personalidade, foi observada em pessoas que sobreviveram a fortíssimos estressores vivenciais, tais como acidentes, cataclismos, câncer, etc (Jaarsma, 2006 – Bellizzi, 2006 – Morris, 2005 – Barakat, 2005 – Thornton, 2005).
Enfatizamos ainda, que diante de vivências consideradas traumáticas há uma tendência científica em acreditar que as respostas emocionais dependem muito mais do sujeito que vivencia do que da experiência vivida, e que nem todas experiências traumáticas resultam, obrigatoriamente, em um transtorno psiquiátrico ou alteração patológica futura de conduta.
Conclusão
As pesquisas sobre efeitos das vivências traumáticas em crianças e adolescentes, assim como os reflexos dessas experiências na vida adulta são difíceis e escassas (pelo menos são escassas aquelas pesquisas com metodologia científica adequada).

Em crianças e adolescentes podemos encontrar conseqüências emocionais do tipo Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Depressão e quadros Fóbico-Ansiosos. Em adolescentes, além desses transtornos emocionais observamos importantes alterações comportamentais, tais como isolamento social, rebendia, constrangimento social e ideação suicida.

Em adultos com passado de abuso sexual (geralmente doméstico) ficam alterações da sexualidade, quadros ansiosos (não raramente o TOC) e depressivos. Entretanto, deve ser relevante o fato de que nem todas as crianças e adolescentes submetidos a experiências traumáticas desenvolvem conseqüências patológicas. Maior ênfase deve ser dado às variáveis pessoais e culturais que influem nas respostas às experiências traumáticas. As variáveis pessoais dizem respeito à constituição da própria personalidade e a ocorrência de transtornos emocionais prévios e/ou predisposições a eles.

Também tem-se pesquisado bastante em relação às alterações orgânicas (notadamente hormonais) ocasionadas pelas vivências traumáticas e estresse.
Além dessas eventuais alterações endócrinas, também tem-se relacionado às experiências traumáticas e ao estresse alterações funcionais e/ou anatômicas do Sistema Nervoso Central.

A idéia de atribuir à pessoa uma importância maior naquilo que as vivências poderiam causar nos faz refletir bastante sobre os fatores ambientais supostamente capazes de justificar transtornos emocionais e de conduta em crianças, adolescentes e adultos, como é o caso das experiências traumáticas. É evidente que a história vivencial tenha a mais relevante importância na essência da pessoa aqui-e-agora, entretanto, não é apenas isso que deve ser buscado entre os fatores relacionados aos problemas psíquicos atuais.

Assim, não se pode atribuir às eventuais experiências traumáticas sofridas precocemente a justificativa absoluta para a conduta dos sociopatas, por exemplo. Nem tampouco que as crianças hiperativas o são por carência afetiva, ou coisa assim. A busca de causas vivenciais relacionadas ao autismo infantil também tem sido completamente estéril. Tudo isso parece muito mais atrelado ao DNA do que ao destino.
É claro que existem experiências fortemente traumáticas e capazes de mobilizar grande número de pessoas, como é o caso de catástrofes naturais (tsunamis, terremotos...) e situações sofríveis produzidas pelo próprio ser humano, como as guerras, terrorismo, violência urbana de grandes proporções. Essas experiências, sem dúvida, podem produzir seqüelas emocionais significativas em grande número de crianças, adolescentes e adultos. Mesmo assim, essas conseqüências não aparecerão em 100% das pessoas.
Experiências traumáticas particularmente vividas, como perdas pessoais, separações conjugais, e coisas assim, deverão ser mais bem pesquisados, uma vez que as variáveis são muitas, assim como são muitas as maneiras das pessoas reagirem a elas. Inclusive, parece que em determinadas circunstâncias as crianças reagem melhor que os adultos.
Também não se tem certeza, fisiologicamente, se alguns sintomas emocionais de crianças e adolescentes que surgem em resposta ao estresse atual poderiam ser considerados reações “normais” a eventos cotidianos aos quais qualquer pessoa estaria sujeita na vida moderna. Mesmo assim, o artigo se justifica pelas crianças e adolescentes que exibem níveis importantes de comprometimento emocional depois de submetidos a vivências traumáticas.

Para referir:
Ballone GJ, Efeitos de Vivências Traumáticas em Crianças e Adolescentes, in. PsiqWeb, Internet, disponível em
http://www.psiqweb.med.br/, revisto em 2009

Nenhum comentário: